Este passeio histórico pelo
centro do porto, com início no mosteiro da serra do Pilar e término na praça
Carlos Alberto, não podia ter melhor guia do que o historiador Joel Cleto. É
uma delícia ouvir alguém tão conhecedor, com um discurso cativante e repleto de
eventos e curiosidades sobre a cidade, a sua história medieval e, neste caso, relacionando-a
com os caminhos de Santiago e a passagem do apóstolo pela península Ibérica.
Foram tantos os acontecimentos
históricos relatados, alguns mitológicos e lendários, outros reais e outros
ainda aparentemente sem relação com o tema, mas que pelas mais diversas e ínvias
coincidências acabaram por desembocar no apóstolo Santiago e na história do
caminho, como é a caso da história da Virgem do Pilar, padroeira de
Espanha.
Mosteiro da Serra do Pilar
O morro de Quebrantões foi o local escolhido pelo
rei D. João III, o Piedoso, penúltimo rei da dinastia de Avis (sucedeu-lhe o
neto D. Sebastião, o que aconteceu depois já se sabe), para instalar o mosteiro. Os anteriores cónegos regrantes de Santo Agostinho, a quem foi
atribuído o convento, ou crúzios, porque foi uma ordem com origem no mosteiro
de Santa Cruz de Coimbra, no reinado de D. Afonso Henriques, estavam
estabelecidos no mosteiro de Grijó e devido à vida desregrada, lúbrica e irresponsável
que levavam, foram deslocados para mais próximo do bispo do Porto. Alguns
ficaram em Grijó, no entanto.
Na ocupação Filipina, o mosteiro
adquire a designação de Nossa Senhora do Pilar. São Tiago, durante a
evangelização da península, viu a virgem Maria, mãe de Jesus, a ser transportada por
anjos em cima de uma nuvem e a ser pousada numa coluna, pilar, algures na
região da atual Saragoça. A primeira aparição da virgem Maria na Península
Ibérica, o primeiro milagre talvez. Assim ficou padroeira de Espanha, razão
pela qual há tantas Maria del Pilar entre
os nossos vizinhos. E por
este ínvio caminho o morro de Quebrantões ficou a ser também conhecido
como serra do Pilar.
Ponte D. Luís
O local onde se encontra é o
ponto mais estreito desde a foz até muitos quilómetros a montante. Era
por aqui que se atravessava o rio, em frente ao morro da pena ventosa, onde a
cidade começou a crescer, ponto alto e ventoso, mas seguro, afastado do
mar e do perigo das incursões corsárias, que ao longo de vários séculos
flagelaram o litoral Português.
O rio Douro, ao contrário do que
o nome sugere, rio do ouro, deve o nome à sua dureza e perigosidade. Rio Dures, dos Romanos: difícil, duro.
Há vários caminhos de Santiago,
cada época constrói o seu, na idade média privilegiavam-se precisamente
os pontos mais estreitos dos rios, mais facilmente atravessados. Os caminhos onde
se construíram pontes: as de Barcelos e de Lima, por exemplo, começaram a ser os mais frequentados. As estradas
romanas foram as grandes vias peregrinas até muito tarde. Em Portugal seguia-se
até Braga e depois a Geira Romana que atravessa o Gerês em direção a Lugo. Os
peregrinos faziam desvios para visitar os santos da sua devoção. A cidade de
Braga competia com Santiago, se nesta repousavam os restos mortais do apóstolo,
em Braga restavam os primeiros mártires e santos cristãos da península Ibérica.
Atualmente o caminho do litoral,
através dos inúmeros passadiços construídos ao longo da costa, tem muito
sucesso entre os turistas do norte da Europa. O oceano atlântico exerce um
fascínio muito grande. Não tem a riqueza patrimonial e histórica de outros
caminhos.
Continuando…
Sé
O espaçoso largo que hoje vemos
entre a sé e a residência oficial do bispo foi construído em 1940, graças à
demolição de muitas casas que anteriormente ocupavam o espaço. O pelourinho, imagine-se, que eu julgava
muito antigo, foi construído no mesmo ano, na cooperativa dos pedreiros
Portuenses.
A origem da Credencial
Os peregrinos com o costumeiro
traje, cajado, chapéu largo com a vieira presa, casacão até aos joelhos, eram
facilmente imitados por gente desonesta, que dessa forma usufruíam
imerecidamente da generosidade e hospitalidade das pessoas e instituições que
os acolhiam. Assim, o rei Filipe II proibiu o traje e instituiu a credencial, o
documento que passou a atestar a veracidade da peregrinação a Santiago. Os
carimbos são a confirmação do início, da distância percorrida e da passagem por
vários locais. As peregrinações a pé, superiores a 100 km, dão direito a
receber o diploma de peregrino na chegada a Santiago.
Estátua de Vimara Peres
Guerreiro Cristão que conquistou
o Porto aos Muçulmanos em 868. Pelos seus feitos o rei das Astúrias
concedeu-lhe diversas terras, numa região mais a norte, que ficou conhecida
pelas terras de Vimara Peres, dando origem ao atual nome de Guimarães. Não é
por acaso que os seus habitantes são os VIMARAnenses. Quando o rei asturiano teve conhecimento da
conquista do Porto, constou-lhe que na cidade existia um templo com grandes
colunas de mármore. O historiador Joel Cleto acredita que essas colunas terão
pertencido a um templo romano e foram posteriormente transportadas para a
catedral de Santiago.
A origem do nome Matosinhos, os milagres do apóstolo e as vieiras,
símbolo do caminho.
São Tiago regressou à província
Romana da Judeia e foi decapitado. Os seus discípulos, Atanásio e Teodoro,
acharem que os restos mortais deviam ser transportados para a região onde
pregou a palavra de Jesus Cristo, a península Ibérica. A viagem é uma sucessão de milagres,
histórias fantásticas e eventos maravilhosos. Começa com a falta de barcos no
porto onde pretendiam embarcar, arranjaram uma barca de pedra. A cabeça e o
corpo são colocados numa urna e quando é aberta estão juntos, como se nunca
tivessem sido separados.
Ao passarem ao largo da uma praia
recôndita, no extremo do mundo conhecido na época, decorria um casamento
romano. O noivo, o nobre Caio Carpo, organizava uma corrida com os cavaleiros convidados,
cujo objetivo era avançar o mais longe possível dentro do mar. Afastou-se cada vez
mais e reparou que cavalgava em cima das ondas, viu a barca de pedra e os dois
ocupantes, que lhe contaram a história do corpo que transportavam. No regresso à
praia, encantado pelo que acabara de acontecer, foi engolido pelas ondas. Todos
os que o aguardavam julgaram que se tinha afogado, quando surgiu a visão
assombrosa do cavaleiro e cavalo a emergir da água completamente cobertos e
matizados pelas vieiras do fundo do mar. É óbvio que o nobre Romano e todos os convidados que o acompanhavam se
converteram ao Cristianismo. A praia onde ocorreu tão maravilhoso acontecimento
ficou a ser conhecida pela praia do matisadinho,
surgindo mais tarde o nome Matosinhos. A vieira, símbolo dos peregrinos de
santiago, tem origem neste acontecimento lendário.
Atanásio e Teodoro desembarcaram
no lugar de Padron, conhecido atualmente pelos seus pimentos, “Uns picam outros
não”. Acostaram a barca num padrão, que
deu origem ao atual nome. Trata-se de uma ara romana em homenagem ao deus
Neptuno. Após muitas peripécias e milagres, que de certa forma lembram uma
história infantil, conseguiram finalmente colocar a urna num planalto com muita
água, esse local foi onde se construiu mais tarde a catedral de Santiago.
Devido às guerras e instabilidade
permanente que se seguiu, provocadas pela queda do império romano e consequente
invasão da península por diferentes tribos germânicas: Vândalos, Alanos,
Suevos, Visigodos, mais tarde pelos Muçulmanos e pelas constantes incursões de
normandos e piratas do norte de áfrica -
o noroeste peninsular ficou a ser uma terra de ninguém, saqueada,
violenta e insegura, fazendo com que a urna ficasse esquecida.
De regresso à época de Vimara Peres
Em 820, data curiosa, época em
que Cristãos e Mouros combatem nesta região da península Ibérica, dá-se outro
milagre. Um eremita olhava as estrelas,
reparou que elas se moviam e parecia que vinham todas de um mesmo local.
Resolve seguir o seu movimento e vai ter a uma gruta onde descobre… é isso
mesmo, a urna do apóstolo. O local passa a ser o Campo das Estrelas, e assim
ficou Santiago de Campus Stellae,
Compustela. Sem querer ofender ninguém e
as crenças de cada um, parece uma história inventada para dar mais força ao
Cristianismo. Um estratagema criado numa época em que a fé em cristo necessitava de se afirmar na luta contra os infiéis muçulmanos, estes acontecimentos maravilhosos, milagres, contribuíam para dar fé às pessoas e fazê-las acreditar. O rei das
Astúrias segue de Oviedo e este fica a ser o caminho primitivo, o primeiro
caminho de Santiago.
O Rio da Vila
Antigo rio que separava o morro
da pena Ventosa do morro da Vitória. Hoje corre debaixo das ruas Mouzinho da
Silveira e de São João. Brevemente serão abertas ao público, possivelmente, visitas guiadas e passeios subterrâneos entre a estação de São Bento e a Ribeira, ao
longo deste curso de água, já despoluído. A Ribeira do Porto deve o nome a este rio ou
ribeira. Os peregrinos tinham que atravessar a ponte que ligava estes morros, da rua da Bainharia à rua dos Caldeireiros, já na Vitória. Nesta rua situava-se
o hospital de Nossa senhora da Silva que acolhia peregrinos. Na idade média a
hospitalidade, daqui deriva o nome Hospital, não se limitava ao tratamento das
feridas e doenças, procurava oferecer igualmente conforto e acompanhamento espiritual.
Finalmente
a porta do Olival e a praça Carlos Alberto
Onde terminava a cidade medieval,
limitada pela muralha Fernandina, parcialmente destruída no século XVIII pelo
governador João de Almada, de forma a permitir a expansão da cidade. Para além
da muralha ficavam extensos olivais, cujo nome permanece na toponímia local: campo e porta do Olival, rua das Oliveiras…o
nosso guia e historiador Joel Cleto realçou a força da memória histórica, que se
traduziu na feliz iniciativa de recolocar oliveiras sobre as lojas e o parque
de estacionamento da praça de Lisboa.
A praça Carlos Alberto, antiga
praça dos Ferradores. Guilda muito
importante e conceituada na idade média, assim como o ofício similar dos
caldeireiros, devido à difícil arte de trabalhar o metal. A alteração do nome
foi um gesto de reconhecimento pelo rei do Piemonte, Carlos Alberto, um dos
obreiros da unificação Italiana. Após a derrota com o exército Austríaco,
algures na década de 40 do século XIX, o monarca exila-se no Porto. O que é
extraordinário é que ele nunca tinha estado na cidade e resolve, muito doente,
sabendo que provavelmente não voltaria a viajar, atravessar a França e Espanha
e instalar-se no Porto.
Por que motivo decide então vir para esta pequena
cidade europeia, quando havia muitas outras alternativas, cidades mais glamorosas,
maiores e mais próximas da sua querida Itália, onde poderia igualmente ser bem acolhido?
Porque tinha ocorrido recentemente
o Cerco do Porto, acontecimento marcante na história de Portugal, que muito
impressionou a opinião internacional da época. O exército liberal, composto por
7000 soldados, mais a população da cidade, resistiu heroicamente, cerca de um
ano e alguns dias, a um cerco de 40000 soldados absolutistas. Rompeu e venceu. Foi
um gesto simbólico de um rei que partilhava os ideais liberais numa guerra
contra um império absolutista. Esteve instalado no hotel que é o Palácio dos
Viscondes de Balsemão, situado nesta praça, depois foi acolhido por uma família
burguesa na quinta da Macieirinha, hoje Museu Romântico, que retrata a época, onde
faleceu tuberculoso.
Aqui situava-se a sede de campanha do General Humberto Delgado nas eleições de 1958, onde foi tirada a
fotografia icónica de uma multidão de milhares de pessoas que enchiam a praça e
ruas adjacentes a ser saudada pelo general da janela, situada no piso superior do atual
café Luso.
Desta praça divergiam os caminhos
para Santiago, tal como hoje os peregrinos tinham que optar entre a estrada de
Braga e a de Barcelos.
Fim.
Praça Carlos Alberto. O Monumento ao Soldado Desconhecido |
Café Luso |
O regresso das oliveiras |
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