domingo, 26 de novembro de 2017

Caminho de Santiago no Porto



Este passeio histórico pelo centro do porto, com início no mosteiro da serra do Pilar e término na praça Carlos Alberto, não podia ter melhor guia do que o historiador Joel Cleto. É uma delícia ouvir alguém tão conhecedor, com um discurso cativante e repleto de eventos e curiosidades sobre a cidade, a sua história medieval e, neste caso, relacionando-a com os caminhos de Santiago e a passagem do apóstolo pela península Ibérica.

Foram tantos os acontecimentos históricos relatados, alguns mitológicos e lendários, outros reais e outros ainda aparentemente sem relação com o tema, mas que pelas mais diversas e ínvias coincidências acabaram por desembocar no apóstolo Santiago e na história do caminho, como é a caso da história da Virgem do Pilar, padroeira de Espanha. 

Mosteiro da Serra do Pilar

O morro de Quebrantões  foi o local escolhido pelo rei D. João III, o Piedoso, penúltimo rei da dinastia de Avis (sucedeu-lhe o neto D. Sebastião, o que aconteceu depois já se sabe), para  instalar o mosteiro. Os anteriores cónegos regrantes de Santo Agostinho, a quem foi atribuído o convento, ou crúzios, porque foi uma ordem com origem no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, no reinado de D. Afonso Henriques, estavam estabelecidos no mosteiro de Grijó e devido à vida desregrada, lúbrica e irresponsável que levavam, foram deslocados para mais próximo do bispo do Porto. Alguns ficaram em Grijó, no entanto.
Na ocupação Filipina, o mosteiro adquire a designação de Nossa Senhora do Pilar. São Tiago, durante a evangelização da península, viu a virgem  Maria, mãe de Jesus, a ser transportada por anjos em cima de uma nuvem e a ser pousada numa coluna, pilar, algures na região da atual Saragoça. A primeira aparição da virgem Maria na Península Ibérica, o primeiro milagre talvez. Assim ficou padroeira de Espanha, razão pela qual há tantas Maria del Pilar entre os nossos vizinhos.   E por este ínvio caminho o morro de Quebrantões ficou a ser também conhecido como  serra do Pilar.




Ponte D. Luís

O local onde se encontra é o ponto mais estreito  desde a foz até muitos quilómetros a montante. Era por aqui que se atravessava o rio, em frente ao morro da pena ventosa, onde a cidade começou a crescer, ponto alto e ventoso, mas seguro, afastado do mar e do perigo das incursões corsárias, que ao longo de vários séculos flagelaram o litoral Português.
O rio Douro, ao contrário do que o nome sugere, rio do ouro, deve o nome à sua dureza e perigosidade. Rio Dures, dos Romanos: difícil, duro.

Há vários caminhos de Santiago, cada época constrói o seu, na idade média privilegiavam-se precisamente os pontos mais estreitos dos rios, mais facilmente atravessados. Os caminhos onde se construíram pontes: as de Barcelos e de Lima, por exemplo,  começaram a ser os mais frequentados. As estradas romanas foram as grandes vias peregrinas até muito tarde. Em Portugal seguia-se até Braga e depois a Geira Romana que atravessa o Gerês em direção a Lugo. Os peregrinos faziam desvios para visitar os santos da sua devoção. A cidade de Braga competia com Santiago, se nesta repousavam os restos mortais do apóstolo, em Braga restavam os primeiros mártires e santos cristãos da península Ibérica.
Atualmente o caminho do litoral, através dos inúmeros passadiços construídos ao longo da costa, tem muito sucesso entre os turistas do norte da Europa. O oceano atlântico exerce um fascínio muito grande. Não tem a riqueza patrimonial e histórica de outros caminhos.
Continuando…


O espaçoso largo que hoje vemos entre a sé e a residência oficial do bispo foi construído em 1940, graças à demolição de muitas casas que anteriormente ocupavam o espaço.  O pelourinho, imagine-se, que eu julgava muito antigo, foi construído no mesmo ano, na cooperativa dos pedreiros Portuenses.


O pelourinho

A origem da Credencial

Os peregrinos com o costumeiro traje, cajado, chapéu largo com a vieira presa, casacão até aos joelhos, eram facilmente imitados por gente desonesta, que dessa forma usufruíam imerecidamente da generosidade e hospitalidade das pessoas e instituições que os acolhiam. Assim, o rei Filipe II proibiu o traje e instituiu a credencial, o documento que passou a atestar a veracidade da peregrinação a Santiago. Os carimbos são a confirmação do início, da distância percorrida e da passagem por vários locais. As peregrinações a pé, superiores a 100 km, dão direito a receber o diploma de peregrino na chegada a Santiago.

Estátua de Vimara Peres

Guerreiro Cristão que conquistou o Porto aos Muçulmanos em 868. Pelos seus feitos o rei das Astúrias concedeu-lhe diversas terras, numa região mais a norte, que ficou conhecida pelas terras de Vimara Peres, dando origem ao atual nome de Guimarães. Não é por acaso que os seus habitantes são os VIMARAnenses.  Quando o rei asturiano teve conhecimento da conquista do Porto, constou-lhe que na cidade existia um templo com grandes colunas de mármore. O historiador Joel Cleto acredita que essas colunas terão pertencido a um templo romano e foram posteriormente transportadas para a catedral de Santiago.


A origem do nome Matosinhos, os milagres do apóstolo e as vieiras, símbolo do caminho. 

São Tiago regressou à província Romana da Judeia e foi decapitado. Os seus discípulos, Atanásio e Teodoro, acharem que os restos mortais deviam ser transportados para a região onde pregou a palavra de Jesus Cristo, a península Ibérica.   A viagem é uma sucessão de milagres, histórias fantásticas e eventos maravilhosos. Começa com a falta de barcos no porto onde pretendiam embarcar, arranjaram uma barca de pedra. A cabeça e o corpo são colocados numa urna e quando é aberta estão juntos, como se nunca tivessem sido separados.
Ao passarem ao largo da uma praia recôndita, no extremo do mundo conhecido na época, decorria um casamento romano. O noivo, o nobre Caio Carpo, organizava uma corrida com os cavaleiros convidados, cujo objetivo era avançar o mais longe possível dentro do mar. Afastou-se cada vez mais e reparou que cavalgava em cima das ondas, viu a barca de pedra e os dois ocupantes, que lhe contaram a história do corpo que transportavam. No regresso à praia, encantado pelo que acabara de acontecer, foi engolido pelas ondas. Todos os que o aguardavam julgaram que se tinha afogado, quando surgiu a visão assombrosa do cavaleiro e cavalo a emergir da água completamente cobertos e matizados pelas vieiras do fundo do mar. É óbvio que o nobre Romano e todos os convidados que o acompanhavam se converteram ao Cristianismo. A praia onde ocorreu tão maravilhoso acontecimento ficou a ser conhecida pela praia do matisadinho, surgindo mais tarde o nome Matosinhos. A vieira, símbolo dos peregrinos de santiago, tem origem neste acontecimento lendário. 
Atanásio e Teodoro desembarcaram no lugar de Padron, conhecido atualmente pelos seus pimentos, “Uns picam outros não”.  Acostaram a barca num padrão, que deu origem ao atual nome. Trata-se de uma ara romana em homenagem ao deus Neptuno. Após muitas peripécias e milagres, que de certa forma lembram uma história infantil, conseguiram finalmente colocar a urna num planalto com muita água, esse local foi onde se construiu mais tarde a catedral de Santiago.
Devido às guerras e instabilidade permanente que se seguiu, provocadas pela queda do império romano e consequente invasão da península por diferentes tribos germânicas: Vândalos, Alanos, Suevos, Visigodos, mais tarde pelos Muçulmanos e pelas constantes incursões de normandos e piratas do norte de áfrica -  o noroeste peninsular ficou a ser uma terra de ninguém, saqueada, violenta e insegura, fazendo com que a urna ficasse esquecida.



De regresso à época de Vimara Peres

Em 820, data curiosa, época em que Cristãos e Mouros combatem nesta região da península Ibérica, dá-se outro milagre.  Um eremita olhava as estrelas, reparou que elas se moviam e parecia que vinham todas de um mesmo local. Resolve seguir  o seu movimento e vai ter a uma gruta onde descobre… é isso mesmo, a urna do apóstolo. O local passa a ser o Campo das Estrelas, e assim ficou Santiago de Campus Stellae, Compustela.  Sem querer ofender ninguém e as crenças de cada um, parece uma história inventada para dar mais força ao Cristianismo. Um estratagema criado numa época em que a fé em cristo necessitava  de se afirmar na luta contra os infiéis muçulmanos, estes acontecimentos maravilhosos, milagres, contribuíam  para dar fé às pessoas e fazê-las acreditar.  O rei das Astúrias segue de Oviedo e este fica a ser o caminho primitivo, o primeiro caminho de Santiago.



O Rio da Vila

Antigo rio que separava o morro da pena Ventosa do morro da Vitória. Hoje corre debaixo das ruas Mouzinho da Silveira e de São João. Brevemente serão abertas ao público, possivelmente, visitas guiadas e passeios subterrâneos entre a estação de São Bento e a Ribeira, ao longo deste curso de água, já despoluído. A  Ribeira do Porto deve o nome a este rio ou ribeira. Os peregrinos tinham que atravessar a ponte que ligava estes morros, da rua da Bainharia à rua dos Caldeireiros, já na Vitória. Nesta rua situava-se o hospital de Nossa senhora da Silva que acolhia peregrinos. Na idade média a hospitalidade, daqui deriva o nome Hospital, não se limitava ao tratamento das feridas e doenças, procurava oferecer igualmente conforto e acompanhamento espiritual.

Antigo Hospital de Nossa Senhora da Silva, Rua dos Caldeireiros

Finalmente a porta do Olival e a praça Carlos Alberto

Onde terminava a cidade medieval, limitada pela muralha Fernandina, parcialmente destruída no século XVIII pelo governador João de Almada, de forma a permitir a expansão da cidade. Para além da muralha ficavam extensos olivais, cujo nome permanece na toponímia local:  campo e porta do Olival, rua das Oliveiras…o nosso guia e historiador Joel Cleto realçou a força da memória histórica, que se traduziu na feliz iniciativa de recolocar oliveiras sobre as lojas e o parque de estacionamento da praça de Lisboa.
A praça Carlos Alberto, antiga praça dos Ferradores.  Guilda muito importante e conceituada na idade média, assim como o ofício similar dos caldeireiros, devido à difícil arte de trabalhar o metal. A alteração do nome foi um gesto de reconhecimento pelo rei do Piemonte, Carlos Alberto, um dos obreiros da unificação Italiana. Após a derrota com o exército Austríaco, algures na década de 40 do século XIX, o monarca exila-se no Porto. O que é extraordinário é que ele nunca tinha estado na cidade e resolve, muito doente, sabendo que provavelmente não voltaria a viajar, atravessar a França e Espanha e instalar-se no Porto.
 Por que motivo decide então vir para esta pequena cidade europeia, quando havia muitas outras alternativas, cidades mais glamorosas, maiores e mais próximas da sua querida Itália, onde poderia igualmente ser bem acolhido?
Porque tinha ocorrido recentemente o Cerco do Porto, acontecimento marcante na história de Portugal, que muito impressionou a opinião internacional da época. O exército liberal, composto por 7000 soldados, mais a população da cidade, resistiu heroicamente, cerca de um ano e alguns dias, a um cerco de 40000 soldados absolutistas. Rompeu e venceu. Foi um gesto simbólico de um rei que partilhava os ideais liberais numa guerra contra um império absolutista. Esteve instalado no hotel que é o Palácio dos Viscondes de Balsemão, situado nesta praça, depois foi acolhido por uma família burguesa na quinta da Macieirinha, hoje Museu Romântico, que retrata a época, onde faleceu tuberculoso.
Aqui situava-se a sede de campanha do General Humberto Delgado nas eleições de 1958, onde foi tirada a fotografia icónica de uma multidão de milhares de pessoas que enchiam a praça e ruas adjacentes a ser saudada pelo general  da janela, situada no piso superior do atual café Luso.
Desta praça divergiam os caminhos para Santiago, tal como hoje os peregrinos tinham que optar entre a estrada de Braga e a de Barcelos.

Fim.
Praça Carlos Alberto. O Monumento ao Soldado Desconhecido
Café Luso

O regresso das oliveiras


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