sábado, 11 de janeiro de 2025

São Gonçalinho

 


Foram encomendadas à confraria 7 toneladas de cavacas, distribuídas por sacos de 5 kg. Cerca de 1400 sacos vendidos a 40 € cada, que as pessoas levam consigo para cumprir a tradição, atirando-as  do cimo da capela.  A fila na entrada da sacristia lateral,  que dá acesso à escadaria para a cúpula, alonga-se dezenas de metros. Pessoas de todas as idades, famílias, pais com o bebé no marsupial, amigos, crianças de capacete, que também estiveram a apanhar cavacas, aguardam a vez de subir.

Compro na primeira barraquinha que encontro um saco de 5 cavacas  por 6€. Preço standard. Não vale a pena procurar mais barato. Vou para a fila, sou o único com o saco pequeno. É um momento único para os beira-marenses, devotos deste santo, castiço e popular, ternamente apelidado de São Gonçalinho pelas gentes do bairro da Beira-mar. Muitas gente só consegue adquirir o saco pequeno, a não ser que tenha encomendado antecipadamente os de 5 kg, esgotados  há três semanas.

O confrade controla  as entradas. Espero  com outras pessoas a ordem para nos deixar subir. Enquanto isso, ele vai conversando bem-disposto: “Sorria, as tristezas não pagam dívidas”, diz,   vendo-me encostado à parede. Fala dos “testemunhos” com um dos visitantes. Não se pode ser confrade todos os anos “tem-se de passar o testemunho”.  

Subo os 41 degraus  até ao exterior da cúpula. Contorno numa fila ordeira  o pátio estreito,  vendo os telhados circundantes, a ria e centenas de pessoas que se aglomeram nas ruas de acesso à capela. Dezenas delas concentram-se no átrio, olham para cima, seguram guarda-chuvas virados ao contrário, camaroeiros e sacos,  prontas para apanhar as cavacas. Atiro as minhas lá para baixo com pouca força, filmando o momento. Ouvem-se  os gritos  de quem  se assusta com a dureza das cavacas e por um triz não leva com uma na cabeça, e de alegria, por conseguirem apanhá-las. Como num  jogo de crianças em que ganha a que mais encher o saco de rebuçados.  Outra tradição, é tocar o sino da capela.  O som ouve-se à distância, sabendo-se ao longe  que estão a ser lançadas cavacas. O lançamento decorre de manhã à noite,  só interrompido durante a realização das cerimónias religiosas.

O  espírito do São Gonçalinho é ingenuidade e alegria, traduzida no diminutivo do nome, nos santinhos de barro de várias cores colocados nas janelas, na airosidade   de milhares de pessoas que se juntam para o celebrar.

O programa deste ano.




O altar do São Gonçalinho

Moliceiro no canal de São Roque

Armazém com sacos de cavacas, de 5kg




Monumento comemorativo da desaparecida muralha de Aveiro. Inaugurado em 8 de dezembro de 2024, da autoria de Siza Vieira



domingo, 5 de janeiro de 2025

As Bestas

 


A energia eólica dá dinheiro aos donos dos terrenos. Uma bênção para muitos.  Costumam aparecer ambientalistas, geralmente gente urbana que não conhece a vida árdua do campo, contra a instalação dos parques. Pessoal cosmopolita pensando pelos outros,  julgando que partilham as mesmas vontades e ideias que eles. Defendem a preservação da natureza, a paisagem e a integridade territorial. A riqueza vem pelo turismo sustentável. 

Podia estar a acontecer connosco,  numa das nossas aldeias.  Assistimos como se fizéssemos parte do enredo, observando o simpático  casal de Franceses  que abandonou  a  vida no seu país a atirou-se de alma e coração a uma  nova vida na aldeola galega, perdida nas montanhas.   Local que os apaixonou e que o terão conhecido fazendo o caminho de Santiago – a certa altura veem-se peregrinos de mochila às costas calcorreando a floresta. Detalhe irrelevante. O importante é que chegam cheios de vontade, pondo mãos à obra, recuperando estábulos e pardieiros, trabalhando a terra, cultivando alimentos, vendendo  no mercado local. 

A  chegada gera um conflito entre dois modos de ser, perspectivas de vida e anseios antagónicos, mostrando o lado polido e educado do ser humano e os seus instintos mais sombrios e violentos.   A  maldade do mundo bem explicada pelos olhos das “bestas” até se torna compreensível. O Homem é capaz, consoante o ambiente em que cresce,  do melhor e do pior. As duas  facetas  através de uma história, interpretações e ambientes absolutamente realistas. 

Convincente e tenso do princípio ao fim. Dos melhores  que vi nos últimos meses.