sábado, 30 de novembro de 2024

Rota das Faias (PR 13 - Manteigas)

 


A quantidade de informação produzida está a aumentar exponencialmente.  No início do século XIX correspondia essencialmente à imprensa escrita, ao telégrafo, livros e revistas publicadas. Hoje, cem anos mais tarde, as plataformas digitais revolucionam a quantidade de informação produzida. Todos nós publicamos notícias, criamos a nossa própria informação, postando fotografias e textos em diversas plataformas digitais. Neste momento, escrevo um texto para ser publicado no meu blog – um entre milhões. Descobri recentemente que a informação no Instagram pode ser duplicada no Facebook, se o publicante assim o pretender.

Milhões  de pessoas em todo o mundo usam a internet, criam informação de alguma forma. Soma-se a divulgação de todo o conhecimento produzido até hoje, reproduzido, misturado, recriado e debitado pela inteligência artificial, a publicidade que cai permanentemente nas contas de email e pesquisas, a parafernália de textos para todos os gostos, fake news, true news. Na política,  predominam frequentemente opiniões acérrimas e contraditórias, clubísticas quase. Os mais ponderados argumentos deparam-se com as mais violentas críticas. O fanatismo, o ódio, a ignorância e o preconceito são terreno fértil para a desinformação. O excesso de informação não esclarece, lança ainda mais confusão no  planeta Terra já de si muito confuso,  e cujo estado de confusão se tende a agravar. Vivemos numa Babel moderna.

Na antiguidade bíblica, os homens quiseram subir até Deus. Começaram a construir uma torre gigantesca. Deus castigou-os inventando diferentes línguas para se desentenderem. A construção da torre parou.  A tecnologia moderna, as plataformas digitais, transformaram-se numa torre de Babel. Paradoxalmente,  temos um planeta em  que o aumento exponencial do número  de pessoas a publicar conteúdos na internet  contribui para o aumento exponencial da invisibilidade desses mesmos conteúdos.  

Portanto, sermos vistos e lidos por alguém torna-se cada vez mais difícil. Somos “Invisíveis”. Apesar disso, vai-se porfiando, escrevendo para si próprio e para os botões. Há um efeito catártico, uma rememoração da vida, dos tempos, do passado e do presente. Uma dupla vida que se quer viver, porque uma só não chega.

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A rota das faias deve ser deslumbrante um mês mais cedo. Caminhar debaixo de copas frondosas,  de folhas amarelecidas e avermelhadas, de muitos tons, vendo os reflexos da luz do sol e sombras ondulantes refletindo-se na terra. Mesmo assim, foi impactante ver os troncos e copas despidas, alinhadas em direção ao céu. Gigantes esquálidos adormecidos.  Imponentes, colocando os minúsculos humanos em sentido e respeito.

 Caminhar na natureza é uma experiência religiosa.   Reconfortante.  As árvores no seu ambiente natural são como Deuses pagãos desconhecidos e inominados,  comunicando connosco. Não há língua que traduza  o que dizem. Nenhuma Babel consegue destruir o seu significado, porque só o silêncio importa.

As casas dos guardas florestais, devolutas todas por onde passei nas estradas da serra da Estrela, representam tempos em que a floresta era mais valorizada. Foi um erro encerrá-las. Devia ser interessante viver ali: o guarda,  mal saia de casa,  começava imediatamente a trabalhar em contacto com a natureza. Trabalhava-se  “a partir de casa”, tal  como os  faroleiros no farol.

Os trabalhadores da Câmara Municipal de Manteigas construíram o bosque de faias no início do século XX, anónimos  fizeram este monumento natural que atrai  todos os anos milhares de pessoas à serra da Estrela.

O Folheto do percurso de pequena rota está aqui. Trilho bem sinalizado. Recomenda-se realizá-lo em outubro/ novembro,  para apreciar as copas nas suas cores outonais mais esplendorosas.  O início do trilho, com poucas árvores,  deve ser muito agreste no verão e nos dias mais frios do ano  é possível que tenha neve.  

Capela de São Lourenço


Posto de Vigia dos incêndios



Pinheiros-do-Oregon


Faias despidas

Casa do Leite


Miradouro de Manteigas

Manteigas


sábado, 23 de novembro de 2024

Ilha de São Jorge

Fico indolentemente sentado na cama com os livros estendidos sobre a colcha, espalhados no colo. Leio avulsamente com a sensação de que o poderia fazer indefinidamente, e pouco mais na vida. Teria em mim todas as leituras e personagens do mundo - e, porque não,  “todos os sonhos do mundo”. Viveria várias vidas sem sair do quarto.

Mas é necessário o movimento, sair, vaguear e divagar. Sem o qual de nada valeriam as leituras. Perderiam intensidade. Ficaríamos isolados, metidos na nossa concha, ensimesmados.

Fajã da Caldeira do Santo Cristo

Estava acampado na Urzelina, na ilha de São Jorge, quando ouvi o som pela primeira vez. À minha frente, a ilha do  Pico, majestosa, em toda a sua extensão, desde a  ponta da Piedade até à Madalena. Escurecia, e no lusco-fusco do entardecer comecei a ouvi-los. Não fazia ideia  do que era. O som discreto ia aumentando de intensidade. Tentava adormecer, mas os  barulhos perturbavam-me. Pareciam bebés a tagarelar antes das primeiras palavras, quando não se entendem ainda os seus ruídos. Vinham de cima, de vários pontos e distâncias, uns muito próximos passavam  por cima do parque, acima da minha tenda. Uns mais intensos do que outros, isolados, em simultâneo, sem intervalos.

Assustei-me. Pensei em fantasmas. Embora nunca tenha acreditado neles, no meio do Atlântico, naquele ambiente de brumas e de reflexos multiluminosos, começava a não ter a certeza. Uma pessoa supersticiosa, se os ouvisse sozinha no meio da noite sem fazer  a mínima ideia de onde vinham os gritos, pensaria em espíritos. O meu racionalismo não me deixou acreditar noutras hipóteses: só podia ser uma ave!
Adormeci com os gritos a ecoar na noite. No dia seguinte, perguntei que aves eram aquelas, que se ouviam  assim que o sol se começava a pôr. Eram cagarros, responderam. Com que então aquilo é que eram os cagarros! Lembrei-me vagamente de  ouvir falar neles em Santa Cruz da Graciosa, onde vivia nessa época.

Os cagarros nidificam junto ao mar, nas falésias altas e rochosas. Não gostam de luz, ficam encadeados e desorientados,  afastam-se dos locais povoados pelo Homem, das luzes artificiais construídas por ele para iluminar as suas povoações.
Mais tarde, no Pico, conheci  um pouco melhor os hábitos da ave.  Muitos juvenis não conseguem acompanhar os bandos no regresso a África, pousam nas bermas das estradas, encostam-se aos muros para descansar. Ficam quietos e aninhados, sendo atropelados e mortos frequentemente.

A rádio Clube Lajes do  Pico passava um anúncio para quem os encontrasse  na estrada. Deviam colocá-los  numa caixa de cartão, alimentá-los com peixe e libertá-los  no mar pouco antes dos primeiros feixes de sol começarem a raiar.

Quando vivi no Pico, encontrei um cagarro vivo e fiz precisamente isso. Felizmente, tinha peixe congelado no frigorífico e caixotes de cartão usados no envio de livros e CDs nas minhas viagens entre as ilhas e o continente. O bicho debateu-se com força, adejou as asas,  tentou sair. Coloquei um livro pesado sobre as dobras, tendo o cuidado de deixar o ar entrar. Levantei-me  da cama para verificar se estava tudo bem, se não encontrava a ave encostada a algum canto da cozinha tentando esgueirar-se. Acordei antes do amanhecer, levei o caixote fechado até ao mar, abri, pus o bicho docilmente  em cima da rocha. 

Cagarro

Aproveitei os dias passados em São Jorge para visitar algumas fajãs, os ex-líbris da ilha.

As fajãs originaram-se devido aos deslizamentos de terra das encostas íngremes das montanhas, formando  pequenas enseadas encostadas ao mar.  A mais famosa  de todas é a da Caldeira do Santo Cristo. O acesso recôndito e  íngreme torna-a inacessível, chega-se lá apenas de barco, ou a pé pelo caminho de terra estreito, entre o mar e a montanha.

O taxista levou-me à fajã dos Cubres.  Demora-se uma hora até à Caldeira do Santo Cristo. Não vi ninguém. Caminhei pela falésia apertada, tendo o mar do meu lado esquerdo. Ouvia o rugido assustador das ondas debaixo de mim, roçava as pernas na abundante vegetação que crescia nas bermas.

Comecei a ver a aldeia  centenas de metros antes de lá chegar, o casario tristonho batido pelas ondas.  As rochas abraçavam a lagoa, isolando-a do mar, formando o leito de água meio salgada, onde se cultivam mexilhões -  o único sítio nos Açores. 

Chovia. Nesses dias conhecia mal o clima dos açores e não andava preparado para os seus humores instáveis. Não levava guarda-chuva, nem roupa impermeável. Chuva  miudinha, persistente e teimosa. Quando cheguei ao casario procurei abrigo.  Estranhamente as casas açorianas não tem os telheiros que protegem da  chuva como as do continente.   Continuava  sem ver ninguém, sem encontrar um café ou um local onde pudesse entrar e me  proteger. Saía fumo de uma das chaminés. Tirando isso, mantinha-se o silêncio, a sensação de isolamento total, de estar numa aldeia fantasma.

Dirigi-me à igreja.  Subi a pequena escadaria que dava acesso à torre sineira, reparei que a minha cabeça cabia dentro do sino, enfiei-a lá dentro, mas continuava a apanhar chuva no resto do corpo. Não resultava estar ali. Desci, dei mais uma volta pelo casario, fui embora com o corpo encharcado e pouco entusiasmado com o local.

Caminho para a fajã da Caldeira do Santo Cristo

Fajã da Caldeira do Santo Cristo


Fajã da Caldeira do Santo Cristo

Fajã da Caldeira do Santo Cristo

O isolamento impressionou-me. Senti um aperto físico por estar num ambiente tão  fragilmente encaixado   entre a montanha e o mar, e psicológico, por ser um sítio tão isolado. Imaginar que ali vive gente e que antigamente viveu muito mais. Uma vida inteira a cultivar  pequenas leiras e a pescar!

No sismo de 1980, devido aos desabamentos, a fajã ficou ainda mais isolada. Tornou-se impossível lá chegar a pé. Só ao fim de alguns dias chegou por barco o primeiro socorro.
Eu estava ansioso por regressar à fajã dos Cubres.  Esperei mais algum tempo pelo taxista, aguardando serenamente que ele me levasse de regresso à minha tenda, meu lar e abrigo temporário.  

Regressei mais vezes  à ilha de São Jorge e conheci outras fajãs, mas nenhuma delas tão isolada e impressionante como a fajã da Caldeira do Santo Cristo. Descobri que o mais incrível na ilha é a vista que se tem da ilha do Pico, dela se usufruí permanentemente ao longo do ano, de quase todos os sítios.

Acordava  na Calheta deparando-me  com a visão longitudinal do outro lado do canal, o longo dorso de um animal adormecido  com a sua elevada proeminência, o Piquinho, rodeada de nuvens,  fumegando gases vulcânicos da sua  cratera. O mar, entre as duas ilhas, espelhando  matizes cinzentas e azuladas, variando consoante a luminosidade do dia.

O Topo é um dos sítios mais isolados dos Açores, fica a  20 quilómetros da Calheta por uma estrada plana, cuja  única povoação no caminho  é Santo Antão. Terreola ainda mais pequena e tristonha. Tive colegas Açorianos que deram aulas no Topo no início da carreira.  Nessa época era impensável alugar casa num local tão remoto,  ficavam a viver na vila  da  Calheta, a sede de concelho. Sempre tinha mais casas e coisas para fazer. Percorriam os 20 quilómetros de carro na estrada de terra batida.  Quando chovia muito não davam aulas, ficava toda enlameada e intransitável.

Velas de São Jorge

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Covilhã


 

Darwin costumava fazer longas caminhadas pelos campos de Kent.  Sem elas  o seu raciocínio não teria sido  tão bem explicitado, tal era a magnitude da teoria que propunha sobre a evolução das espécies. Com a ajuda da natureza e da observação do ambiente que o rodeava conseguiu o fôlego  intelectual necessário à formulação clara dos seus princípios.  

Caminhar coloca em contacto o mundo e as pessoas, os genes e a ancestralidade humana em funcionamento. O Homem foi nómada antes de ser essencialmente sedentário.  Evoluiu em movimento. Por essa razão, persiste no íntimo da cada um a necessidade de estar em deslocação permanente.

Quando não há afazeres, ou se está  assoberbado de trabalho, sem saber por onde começar, sair de casa, arejar  ideias é uma solução. Não faz mal a ninguém, não danifica a natureza em trabalhos extrativistas, não polui a atmosfera com a condução automóvel. Pensar e caminhar não agride,  a não ser  eventuais caracóis, insetos e plantas esmagados pelos  pés ou o próprio em acidentes.

Pode ser desagradável caminhar sozinho, a solidão maior, sem ninguém com quem partilhar o caminho e o momento.  A televisão, as redes, os grupos sociais, virtuais ou reais, criam estímulos constantes e distraem.  No vazio e silêncio fica-se mais próximo de se tomar  consciência de si, de ter uma  experiência  libertadora. Ou perturbadora,  se o ruído permanecer  no cérebro e no espírito,  a inquietação nas pessoas, mesmo  no meio das montanhas.  Este tipo de ruído é o mais difícil de desaparecer.

Caminhar à chuva e ao sol, andar despercebido em segurança, é estimulante. No fundo, trata-se de liberdade, de conseguir viver com ela e de saber apreciá-la.

Vai-se aprendendo algo com os sítios e a observação, mesmo que não se faça muito por isso.

A Covilhã, lembrei-me do que me falou um colega de artes, é a “Capital dos Murais de Portugal”. A partir de certa altura, comecei a vê-los nas fachadas do centro da cidade. Entusiasmei-me,  o objetivo tornou-se mais definido: captar o maior número possível de imagens. A cidade transformou-se, tornou-se mais acolhedora, moderna e vibrante, no meio das ruelas vazias e antiquadas onde passava. Gostei do centro, do esforço de modernização artística e de acompanhamento das tendências urbanas. Depois de duas horas de caminhada e deambulação foi o momento mais compensador, até ali tinha observado exemplos patéticos, dos muitos  que abundam em Portugal, de estruturas caras recentemente construídas que não funcionam. Elevadores “temporariamente indisponíveis” que iriam facilitar a mobilidade entre o bairro dos Penedos Altos, as partes baixas e alta da cidade, construídos com fundos europeus, ao abrigo do programa Polis. Milhões de euros gastos, desperdiçados sem qualquer retorno efetivo na vida prática das comunidades.