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Convento de Arouca, Coro baixo |
O velho sábio felicitou-nos por
nos voltar a encontrar. Desta vez, tinha novidades: não voltaria a esperar
indefinidamente pelo princípio do mundo.
Não queria que a história se
voltasse a repetir. Houve uma primeira vez em que o Homem por ignorância cometeu
falhas. A vida na sua juventude
era ordenada, previsível. Conheceu a eloquência dos salões, a elegância das
mulheres da alta sociedade. As classes sociais estruturavam-se sem conflitos, tudo
decorria com a normalidade e tranquilidade que permitia juntar um pé-de-meia, chegar
a casa ao fim do dia depois do trabalho com o sentimento do dever cumprido,
fruindo o recato que as horas lhe davam, o silêncio e o isolamento necessário que
tanto desejava. Até que tudo ruiu. O mundo entrou em guerra, o que era dado
como certo subitamente se desvaneceu, eclipsou-se indefinidamente na noite mais
escura.
As viagens que fazia sem preocupações
ao encontro de amigos nas mais diversas partes do mundo, tornaram-se onerosas e
humilhantes, tinha de adquirir passaporte, pedir vistos e autorizações, mostrar
os certificados de vacina. Passar horas intermináveis em guichês à mercê de
burocratas imprevisíveis. Antes, chegava a uma cidade e deslocava-se
diretamente ao museu mais próximo para observar obras de arte que elevavam o
espírito. Agora, sempre que saía do país tinha de passar pela rotina degradante
de pedir nova autorização de residência, estar numa fila de espera com centenas
de outras pessoas desde madrugada, sem ter a certeza de ser atendido. Era
apátrida.
Na sua juventude, a ideia de um
dia ser apátrida ter-lhe-ia seduzido. Idealizava uma república liberal, baseada
no mérito. Povos de diversas línguas e religiões conviveriam pacificamente
entre si, dialeticamente tolerantes, aprendendo uns com os outros em prol de um
futuro comum promissor. Viveria sem passaporte, seria cidadão do mundo.
Está sem chão, as suas
referências, as pessoas que conheceu faleceram, ou começaram a ignorá-lo como
se tivesse sarna, desde que insidiosamente alastrou a ideia, no seu país, de que
o seguidor de uma religião diferente continha em si os germes da insurreição e
do terrorismo. Passou a ser um indivíduo
suspeito, sem nada ter feito por isso. Nunca deu importância ao seu tom de pele, à forma do nariz ou cor escura dos olhos, ou sequer à
religião que a sua família praticou desde sempre, era ateu e descrente. Subitamente,
viu-se envolvido no espírito do tempo, vítima do ódio e intolerância que
crescia à sua volta.
Fugiu pressentindo o perigo que o
ameaçava. Procurou as mais diversas guaridas, foi recebido por mecenas que conheciam
a sua obra, frequentou tertúlias literárias. Estava em constante mudança, longe
das convulsões do país natal onde os seus livros foram proibidos – não podia
ler na sua língua! Era um exilado do país e da alma. Um proscrito. Estava
desiludido com o rumo da humanidade e pessoalmente deprimido, não se enquadrava
em lado nenhum.
Ele e a companheira estavam cansados de saltitar de país em pais. Descobriu Arouca. No vale rodeado de montanhas encontraria a paz de espírito,
prosseguiria os estudos de
personalidades e momentos da história. As
relíquias arqueológicas relacionadas com
os castros primitivos, os vestígios da ordem de Malta gravadas em lápides e muros
de igrejas, a antiguidade do convento desde
a fundação Beneditina à transferência para a ordem de Cister no dealbar da
nacionalidade, davam-lhe motivos de sobra para se embrenhar em pesquisas sobre
a terra e as gentes que encontrou. Pacientemente
recomeçaria a nova vida, retomaria hábitos anteriores, viveria o latejar do tempo neste pequeno local idílico.
Recebeu-nos como da última vez. Descrevemos-lhe o convento e o Museu que visitamos, a exposição temporária de objetos cristãos vandalizados pelo DAESH no Iraque – a sua expressão facial entristeceu, conhecia bem essa realidade, vivera em Mossul de onde foi expulso -, o trilho maravilhoso que fizemos, cujos passadiços se viam do alpendre de sua casa tradicional, construída em granito, com espigueiro de vigas vermelhas sobre a eira, na margem do rio Arda. A quinta estava abandonada, foi um apreciador da sua obra que se dispôs a recuperar a casa dos caseiros para que ele e sua esposa pudessem ali ficar, descansando das suas desditas e andanças. Ofereceu-nos vinho maduro tinto, brindamos a dias melhores.
Contou-nos uma parte da vida que,
como sabíamos, foi venturosa e rica em
experiências. Conviveu pessoalmente com pessoas influentes, artistas renomados,
visitou cidades e países que lhe estenderam os braços abertos.
Quando saímos de sua casa, ele e
a esposa tiraram da gaveta as peças que vestiam nas cerimónias solenes,
trocaram de roupa como se estivessem para ser recebidos pelo rei de Inglaterra. Tinham
os comprimidos guardados na pequena arca prateada, fechada à chave na mesinha
de cabeceira. Deitaram-se na cama de mãos
dadas. Pela cortina esvoaçante os contrafortes da serra da Freita lembravam as
montanhas do país natal. Os pássaros chilreavam inebriados com a chegada da
primavera. Engoliram os comprimidos. Começaram
a sentir na língua dormente o sabor acre e metalizado da estricnina, cerraram
as pálpebras lentamente...
Deixou uma frase de despedida em
que dizia apenas: “Não se preocupem comigo, fui eu quem escolheu seguir
primeiro.”
Convento de Arouca
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Exposição de objetos Cristãos vandalizados pelo DAESH |
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Relicário com ossadas de Santos |
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Rio Arda |