sábado, 5 de abril de 2025

Arouca

 

Convento de Arouca, Coro baixo

O velho sábio felicitou-nos por nos voltar a encontrar. Desta vez, tinha novidades: não voltaria a esperar indefinidamente pelo princípio do mundo.

Não queria que a história se voltasse a repetir. Houve uma primeira vez em que o Homem por ignorância cometeu falhas.  A vida na sua juventude era ordenada, previsível. Conheceu a eloquência dos salões, a elegância das mulheres da alta sociedade. As classes sociais estruturavam-se sem conflitos, tudo decorria com a normalidade e tranquilidade que permitia juntar um pé-de-meia, chegar a casa ao fim do dia depois do trabalho com o sentimento do dever cumprido, fruindo o recato que as horas lhe davam, o silêncio e o isolamento necessário que tanto desejava. Até que tudo ruiu. O mundo entrou em guerra, o que era dado como certo subitamente se desvaneceu, eclipsou-se indefinidamente na noite mais escura.

As viagens que fazia sem preocupações ao encontro de amigos nas mais diversas partes do mundo, tornaram-se onerosas e humilhantes, tinha de adquirir passaporte, pedir vistos e autorizações, mostrar os certificados de vacina. Passar horas intermináveis em guichês à mercê de burocratas imprevisíveis. Antes, chegava a uma cidade e deslocava-se diretamente ao museu mais próximo para observar obras de arte que elevavam o espírito. Agora, sempre que saía do país tinha de passar pela rotina degradante de pedir nova autorização de residência, estar numa fila de espera com centenas de outras pessoas desde madrugada, sem ter a certeza de ser atendido. Era apátrida.

Na sua juventude, a ideia de um dia ser apátrida ter-lhe-ia seduzido. Idealizava uma república liberal, baseada no mérito. Povos de diversas línguas e religiões conviveriam pacificamente entre si, dialeticamente tolerantes, aprendendo uns com os outros em prol de um futuro comum promissor. Viveria sem passaporte, seria cidadão do mundo.

Está sem chão, as suas referências, as pessoas que conheceu faleceram, ou começaram a ignorá-lo como se tivesse sarna, desde que insidiosamente alastrou a ideia, no seu país, de que o seguidor de uma religião diferente continha em si os germes da insurreição e do terrorismo.  Passou a ser um indivíduo suspeito, sem nada ter feito por isso. Nunca deu importância ao seu tom de pele, à forma do nariz ou  cor escura dos olhos, ou sequer  à religião que a sua família praticou desde sempre, era ateu e descrente. Subitamente, viu-se envolvido no espírito do tempo, vítima do ódio e intolerância que crescia à sua volta.

Fugiu pressentindo o perigo que o ameaçava. Procurou as mais diversas guaridas, foi recebido por mecenas que conheciam a sua obra, frequentou tertúlias literárias. Estava em constante mudança, longe das convulsões do país natal onde os seus livros foram proibidos – não podia ler na sua língua! Era um exilado do país e da alma. Um proscrito. Estava desiludido com o rumo da humanidade e pessoalmente deprimido, não se enquadrava em lado nenhum.

Ele e a companheira estavam cansados de saltitar de país em pais. Descobriu  Arouca. No vale rodeado de montanhas encontraria a paz de espírito, prosseguiria os estudos de personalidades e momentos da história. As  relíquias arqueológicas relacionadas com os castros primitivos, os vestígios da ordem de Malta gravadas em lápides e muros de igrejas,  a antiguidade do convento desde a fundação Beneditina à transferência para a ordem de Cister no dealbar da nacionalidade, davam-lhe motivos de sobra para se embrenhar em pesquisas sobre a  terra e as gentes que encontrou. Pacientemente recomeçaria a nova vida, retomaria hábitos anteriores, viveria o  latejar do tempo neste pequeno local idílico.

Recebeu-nos como da última vez.  Descrevemos-lhe o convento e o Museu que visitamos, a exposição temporária de objetos cristãos vandalizados pelo DAESH no Iraque – a  sua expressão facial entristeceu, conhecia bem essa realidade, vivera em Mossul  de onde foi  expulso -, o trilho maravilhoso que fizemos, cujos passadiços se viam do alpendre de sua casa tradicional, construída em granito, com espigueiro de vigas vermelhas sobre a eira, na margem do rio Arda. A quinta estava abandonada, foi um apreciador da sua obra que se dispôs a recuperar a casa dos caseiros para que ele e sua esposa pudessem ali ficar, descansando das suas desditas e andanças. Ofereceu-nos vinho maduro tinto, brindamos a dias melhores.

Contou-nos uma parte da vida que, como  sabíamos, foi venturosa e rica em experiências. Conviveu pessoalmente com pessoas influentes, artistas renomados, visitou cidades e países que lhe estenderam os braços abertos.

Quando saímos de sua casa, ele e a esposa tiraram da gaveta as peças que vestiam nas cerimónias solenes, trocaram de roupa como se estivessem para ser recebidos pelo rei   de Inglaterra.    Tinham os comprimidos guardados na pequena arca prateada, fechada à chave na mesinha de cabeceira.  Deitaram-se na cama de mãos dadas. Pela cortina esvoaçante os contrafortes da serra da Freita lembravam as montanhas do país natal. Os pássaros chilreavam inebriados com a chegada da primavera. Engoliram os comprimidos.  Começaram a sentir na língua dormente o sabor acre e metalizado da estricnina, cerraram as pálpebras lentamente...

Deixou uma frase de despedida em que dizia apenas: “Não se preocupem comigo, fui eu quem escolheu seguir primeiro.”

Convento de Arouca





Exposição de objetos Cristãos vandalizados pelo DAESH










Relicário com ossadas de Santos 










Rio Arda




domingo, 23 de março de 2025

Cuenca

 


Deixou-se ficar para trás, não conseguia atravessar a ponte San Pablo. Calcorreou os primeiros metros, mas a irracionalidade das vertigens foi  mais forte, sentiu o tremor lívido do medo, o pânico invisível que o desequilibrava. Recuou enquanto o grupo se afastava e tirava fotografias da outra margem do Huécar.  

As casas colgadas no cimo da muralha medieval, com suas varandas suspensas sobre  as paredes abruptas, também o impressionavam.  Tudo era imponente, construído sobre morros altos com propósitos defensivos. Ele era atreito a medos e fobias, seria incapaz de se pôr numa das varandas como era apanágio das damas nobres.  O encontro combinado com Soraya sofreria um revés,  não entraria no restaurante de uma estrela Michelin para fazer o jantar à luz das velas, conforme combinado. Não imaginava quando fez a reserva ao telefone que o restaurante de luxo ficava dentro das casas colgadas e que de lá teria aquela vista que tanto o assustava. Estava fora de questão.

Faltavam algumas horas, até lá iludiria o tempo. Não queria dar parte de fraco, cancelaria o jantar e arranjaria uma desculpa qualquer,  uma urgência de última hora que convenceria Soraya.

Entrou nas muralhas, caminhou até à Plaza Mayor. A catedral gótica estava aberta, pagou 5€, visitou a nave e as capelas laterais, foi aos claustros, em obras com as paredes cobertas de cortinas e andaimes. Feixes de luz dourada atravessavam os desenhos abstratos dos vitrais contemporâneos, criados para transmitir  sentimentos de transcendência e leveza, de maior proximidade com o divino. Não lhe interessa a religiosidade, os dogmas e discussões filosóficas estéreis em torno de assuntos  subjetivos do domínio da fé. Respeita as obras grandiosas produzidas pelo engenho humano em nome da religião, de qualquer uma,  a criatividade e o poder do homem, mesmo não partilhando a mesma crença. Debaixo das colunas e abóbadas ogivais era impossível ficar indiferente. Desceu à  sala de ícones, pequenas maravilhas artísticas, luminosas, coloridas, de várias origens, doadas  por um cónego local. Ficaria horas a olhar os quadros, os santos em relevo, as procissões coloridas na Rússia. A câmara de videovigilância filmava-o, jamais se atreveria a tocar neles, seria uma profanação.   Lembrou-se da cena final do  filme "Andrey Rubliev", de Tarkovsky, os ícones mostrados em grandes planos. Fez o mesmo, filmou com o telemóvel num travelling as imagens na parede.

Soraya continuava sem responder aos SMS e WhatsApp  que lhe foi enviando com  fotografias  e mensagens de amor. Ainda não arranjara coragem para lhe dizer que cancelara o jantar, passariam a noite num outro sítio e lhe diria o quanto a amava.





















sábado, 22 de março de 2025

Trilho da Pasarela Del Barranco de la Hoz (Teruel)

 


O manto branco de neve cobre os extensos pinhais bravos da serra. A estrada serpenteia  ao longo da natureza incólume e selvagem. O Tejo,  minúsculo fio de água,  desponta da nascente, corre estreito entre a erva hirta e as agulhas de gelo. O exterminador vai de camioneta a Albarracín, camuflado de turista, na companhia dos humanos  fascinados com a alvura da neve. Autêntico  Blade Runner,  só reconhecido por outros como ele.

O guia, Ignácio,  cristão descendente dos Aragoneses que reconquistaram o reino, orienta o grupo. Hoje, realizam o trilho das Pasarelas do Barranco de la Hoz. Partem de Calomarde a pé. A neve resplandece sob o manto de sol que raia das nuvens. As chuvas intensas alagaram o trilho. Os humanos descalçam as botas de caminhada, molham os pés na água gelada, calcam lama e  saibro cortante. O exterminador  é uma máquina insensível. Inveja-os  por sentirem dor,  água a escorrer no corpo,  frio e calor.

Chegam a um local ermo sobre falésias perigosas, o humano Pedro sente vertigens, acocora-se na rocha a aguardar o regresso dos restantes colegas. Enquanto isso, filma ao longe os barrancos íngremes que o assustam, frui o silêncio. Mais tarde, quando fica com rede, posta vídeos e  comentários no Facebook. O exterminador acha estúpido  filmar, comentar e divulgar tudo para os amigos verem e fazer likes. Até os momentos mais recatados e únicos são filmados!

Se fosse humano não passaria o tempo a utilizar gadgets, apreciaria os sentidos oferecidos pelo corpo, cometeria erros propositadamente e riria deles. Como máquina está condenado a funcionar ininterruptamente, milimetricamente, previsivelmente funcional e certeiro  até ao longínquo  dia em que  avariar de vez.

Ignácio leva o grupo a Albarracín, local  onde o exterminador  havia encontrado nas suas viagens no tempo o mouro Ibn Al Razim. Lembra-se da sua  gentileza e coragem, assim como a das suas gentes. Congratula-se que a memória do  amigo  tenha perdurado no nome da serra e da vila encantada. Albarracín, a vila vermelha, continua altiva e impressionante, igual a si própria, como se o tempo não tivesse passado. Nas  suas ruas estreitas parecem ecoar ainda  as vozes dos alfagemes que poliam  espadas, as dos almocreves  e vendedores que chegavam à fortaleza  de todos os cantos do emirado de Córdoba. Os humanos deambulam nas ruelas, tiram fotografias teimosamente em todo o lado de todos os ângulos possíveis e imaginários, ele não sabe se olham mais para o telemóvel ou se para o ambiente medieval que os rodeia, tingido de muralhas, telhados e paredes ocres.  

Chegam  a Teruel ao fim da tarde,  fazem  o check in no hotel. Passeiam  antes do jantar, apreciam a arte mudéjar das torres e palácios da cidade, as  misturas de estilo islâmico, cristão e judaico, reunidas nessa arte única,  só existente na península Ibérica. O  Exterminador sabe tudo,  basta recorrer à inteligência artificial com a qual foi programado  que obtém toda a informação, sintetizando em poucos segundos os dados  de milhares de documentos digitalizados nas redes. Cativam-no as emoções  humanas, imiscuir-se nelas, mais interessantes e imprevisíveis do que toda a informação compilada até hoje.

Inventa o nome  Joaquim e a profissão de professor para conversar com  a mulher ao seu lado. Falam de escola como os professores  fazem sempre que estão juntos. Sai-se bem, ela jamais descobriria que o senhor tão simpático,  aparentando longa experiência  e profissionalismo,  não passa de  uma máquina.

Quatro amigas pré-reformadas jantam na mesa, à parte. Andam sempre juntas e perdem-se do grupo frequentemente. Levam os telemóveis  e o stick na mão, tiram  muitas selfies,  sorriem várias vezes  para a fotografia, observam uma por uma as imagens,  eliminam  aquelas em que estão mais "feias" até chegar a acordo, selecionando  as melhores.  Ignácio mantém o ar digno aturando os seus comentários que o culpam de  as deixar sistematicamente para trás.

Os casais recatados de meia idade soltam a língua depois dos primeiros copos. Ficam  bem dispostos e extrovertidos,  descobrem parentescos,  amigos comuns: por um triz não se cruzaram no último verão  com fulano e sicrano na grande muralha da China! Como os humanos variam de humor depois  de um  jantar opíparo!  Ao início  tão formais,   tornam-se efusivos, parecem amigos de longa data ao fim de poucas horas.  

Trilho da Pasarela do Barranco de La Hoz







Albarracín














Teruel