sábado, 9 de agosto de 2025

Praia do Almoxarife



Depois de um dia passado no Pico,  a reviver memórias, a mergulhar em pequenos portos de águas tépidas e a rever aldeolas de adegas garridas entre vinhas negras - contrastes de paisagens cristalinas que parecem ter sido desenhadas propositadamente por um arquiteto paisagista para deslumbrar os visitantes - regressamos à Horta.

Vamos às compras e à praia, o carro fica com os vidros abertos para arejar o calor húmido e sufocante dos dias. Esquecemos as chaves na ignição, os documentos e o cartão de crédito. Regressamos: o carro continua intacto, no mesmo sítio, vidros abertos, documentos no porta-luvas. Segurança, tranquilidade e liberdade, assim são estas pequenas ilhas, onde as pessoas se conhecem umas às outras. Roubar um carro para quê? fugir para onde com ele?
O frigorífico está cheio de peixes congelados: enxaréu, bicuda, bodião, peixe-porco, bocanegra, veja, robalo, lírio, atum. Peixes dos Açores, grelhados nestes dias, escalados na chapa, na esplanada com vista para o Pico.
- O problema das ilhas são os mexericos, toda a gente fala dos outros. Um vez, não apareci no café onde costumo ir. Quando me viram, perguntaram logo onde estive a essa hora. Não há privacidade social, somos controlados e vigiados inconscientemente por todos. Nas ilhas pequenas é pior.
Conversa ao jantar entre amigos. Mesa farta: vinho, lombos de atum, doces dos Açores - espécies de São Jorge, tarte de café da Fajã dos Vimes, massa sovada - a melhor das ilhas! - da Praia do Norte, do Faial. Cigarrilhas da Fábrica de Tabaco Micaelense e cálices de Jameson. Continentais que vivem nas ilhas, descobrem conhecimentos comuns e lugares frequentados por ambos. O mundo é pequeno. Estou num lugar distante, no meio do Atlântico, sinto-me no centro do mundo, em casa. Jogamos o jogo tradicional da Ramalhinha, num tabuleiro sólido de madeira, à venda em fabricantes exclusivos dos Açores. Sem televisão nem telemóveis, como antigamente. A luz das velas substituída pelo luar da lua cheia sobre a varanda.
O mundo seria perfeito se não ligasse os dados móveis, não consultasse o FB, nem o Instagram, se não estivesse atento ao mundo alucinante lá fora: aniquila-se Gaza, mata-se um povo à fome. Em Inglaterra, um grupo de ativistas lança tinta em aviões militares que matam crianças em Gaza, é ilegalizado, considerado terrorista. O governo que destrói e mata palestinianos inocentes não sofre uma única sanção! Arranjam-se as explicações mais estapafúrdias para justificar o injustificável. 
Pico

Pico

Pico

Pico


Faial

Faial

Faial 

Faial 

Faial

Faial


terça-feira, 5 de agosto de 2025

Fajã da Caldeira do Santo Cristo

Descemos devagarinho por uma estrada íngreme, em segunda, os travões a cheirar a queimado. Estradas medonhas, repletas de perigos - alguns evitáveis,  conduzindo com muita precaução - e outros, inevitáveis, provocados por deslizamentos de rochas que causam acidentes graves e aleatórios. Lá em baixo, a Fajã dos Vimes, o único ponto do território português - talvez da Europa - onde se produz café. O senhor Nunes produz, torra, mói e vende o seu proprio café. Uma das várias produções familiares da fajã. Bebemos chávenas, reconfortantes e leves. Compramos um pacote de 5O g - acabado de moer e de ser empacotado - como recordação. 10€!! Excessivamente caro, só o compramos porque não voltaremos tão cedo à Fajã dos Vimes. 

A Fajã da Caldeira de Santo Cristo é a rainha das fajãs. A caminhada desde os Cubres, ida e volta, demora três horas, nas calmas. O velho e estreito trilho na encosta da montanha foi repisado e alargado para permitir a passagem de moto4. Cruzámo-nos com algumas motos4 que transportavam turistas idosos - o ar tóxico do cano de escape entra-nos pelas narinas - e com outros, a pé. Após estes breves encontros,  ficamos novamente a sós, usufruindo o esplendor paisagístico do cenário grandioso que nos envolve. O recorte da pequena ilha Graciosa distingue-se rodeado de nuvens brancas e reflexos espelhados do céu e do mar, duas colinas suspensas pairando etéreas no horizonte azul.
















segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Ribeira do Nabo

Os blogues de viagem são autênticos compêndios turísticos do mundo, apresentam informações completas, muitas páginas, links, designs atraentes. Repletos de dicas para viajantes, escritos por gente bonita, que largou tudo ou passa uma parte da vida em viagem, a solo ou em casal. Vivem de patrocínios, publicidade e donativos. Geram um mercado de blogues e de viagens. Promovem estilos de vida viajeiros, para todos os continentes e países, dos mais próximos aos mais remotos. Dão sitios a conhecer, a visitar, onde comer, ficar, a melhor altura do ano para ir. Uniformizam gostos, procedimentos, modos de viajar. O que, ao início, era exclusivo e inédito, passou a ser acessível a várias carteiras. Sitios a salvo da massificação turística, vivendo de atividades económicas tradicionais, modos de vida comunitários e ancestrais, desaparecem lentamente.

Os Açores que eu conheci não existem. Estão lá as paisagens, as cores, a história, a arquitetura tradicional, o silêncio. As pessoas não são as mesmas, foram envelhecendo e, sem darem por isso, mudararam com o tempo, o advento do turismo, alterando hábitos e rotinas. As ilhas tornam-se iguais a outros destinos: restaurantes caros servem pratos internacionais; turistas vestem as mesmas marcas de roupa, independentemente da nacionalidade - roupa pratica, cómoda, versátil. Os preços da habitação disparam: é difícil encontrar alojamento acessível - os locais preferem alugar um apartamento a turistas sazonais do que alugá-lo todo o ano a trabalhadores do continente. Grupos organizados da Alemanha, Itália e França realizam trekkings nas fajãs de São Jorge, sobem a montanha do Pico, exploram trilhos maravilhosos. Um paraíso para os amantes das caminhadas, devido ao clima ameno, à diversidade de cores e às paisagens fulgurantes em curtos espaços.


O adolescentes regressam ao Pico, das festas do mar, no barco das 07h00m da manhã. Dormem ressacados, deitados nos bancos, estendidos no chão do convés. O som das notícias transmitidas pelas televisões das cabines espalha-se pelos altifalantes do navio Mestre Jaime Feijó: incêndios no continente, engarrafamentos na segunda circular, fome e destruição em Gaza. É anacrónico ouvir as notícias do país e do mundo nesta pequena viagem de barco entre o Faial e São Jorge. Aqui, o tempo parou, o mundo está em paz. Contudo, a intoxicação permanente das notícias e da realidade cruel também chega a este remoto lugar. Preferia que o mau gosto das televisões, de transmitir permanentemente a desgraça, estivesse desligado. 

Vou sentado na popa, de costas para a ilha. O vento aprazível bate na cara, previne o enjoo da viagem. Os contornos das ilhas do triângulo vislumbram-se no alto mar: três ilhas, três mundos sedutores, misteriosos e inefáveis.  

O cone do Pico desponta acima da nuvem, imponente e majestoso. O barco atraca nas Velas," São Jorge tem um cheiro único", diz Dinis. 

Alojámo-nos numa casa rural na Ribeira do Nabo: simpatia e generosidade de uma amiga da nossa amiga. Reduzidos ao simples e essencial fruiremos o convívio, a amizade e a beleza da ilha. Uma vaca muge no serrado com vista para o Pico. Cedo, nas manhãs seguintes, voltarei a ouvi-la. Passaremos os dias a descobrir paisagens e a explorar portinhos.

- É uma falácia conhecer São Jorge pelas fajãs, a ilha tem muito mais portinhos para descobrir do que fajãs.

Piscinas naturais de água deliciosa e translúcida, entre rochas e pequenos cais de pesca, polvilham a longa costa. Um mundo de possibilidades para explorar locais de mergulho e de lazer. 

Americanos de sotaque serrado chegam ao pequeno areal de rocha negra, falam alto. Afinal, são portugueses, açorianos, nascidos na Urzelina, a viver em Toronto. Nunca foram ao Continente, vivem no Canadá desde miúdos. 

No portinho da Calheta, um americano queixa- se da temperatura da água. Também é português. Viveu na Califórnia trinta e seis anos e, apesar de estar habituado às águas frias do Pacífico, está-lhe a custar entrar.

O Dinis empresta-me os óculos e o tubo de mergulho. Vejo pequenos peixes de cores garridas, nadam encostados às rochas cobertas de algas verdes e castanhas, escondem-se fugidios nas cavidades. 

Fazemos um intervalo na hora de maior calor. Vamos à Calheta à procura de um casal conhecido de longa data, que não vemos há muitos anos. Batemos à porta:

- a sua cara não me é estranha.

Depois de algumas hesitações e suspense propositado para os obrigar a puxar pela memória: sorrisos, beijinhos, abraços. 

O tempo passa rápido, as pessoas, as recordações ficam. Subitamente, o que estava esquecido, arrastado para o fundo da memória, surge vívido como se tivesse sido ontem: basta mudar de lugar e reencontrar gente que, por alguma razão, se cruzou connosco num momento da vida.









sábado, 2 de agosto de 2025

Faial


Um dos poucos autocarros que passa na rua, no Sábado, chega atrasado. Temos de fazer transbordo. Esperamos o segundo autocarro nos Carvalhos. Demora. Os passageiros à espera exasperam-se com os atrasos, queixam-se do incumprimento dos horários e da alteração das carreiras, sem aviso prévio. A paragem tem placas em dois sítios diferentes. Numa delas, tenho de me pôr na rua, de costas para os carros, para consultar as linhas. Que perigo! 

- Aqui estamos muito isolados - diz uma senhora que consulta o tempo de espera na aplicação moovit.

Apanhamos um autocarro que não estava previsto. Hora e meia depois de sairmos da casa dos nossos amigos, chegámos à estação de metro D. João II. Em viatura particular, levaríamos  vinte minutos, apenas.  Sem engarrafamentos.

A partir do centro de Gaia, tudo se torna mais eficiente, pontual e previsível. Na estação da Trindade, mudamos para a linha violeta em direção ao aeroporto. Carruagem tipo shuttle, moderna e confortável. Viagem tranquila.

O voo para Ponta Delgada parte com uma hora de atraso. Perdemos a ligação da SATA à ilha Terceira e, depois, o voo para o Faial. Recebo uma mensagem no telemóvel:


A SATA informa que foi reacomodado para o voo SP1438 PDL PIX de 02/08/2025 às 20:20. Para consultar os seus direitos e assistencia, clique aqui azrair.com/direitos. Boa viagem.



Passamos as horas no terminal do aeroporto de Ponta Delgada. Comemos duas pequenas refeições com os dois vouchers que a companhia aérea nos ofereceu, como indemnização. O pequeno terminal está apinhado de turistas com roupa de trekking: os Açores são do melhor que há para caminhar: mar, montanha, sítios planos, ribeiras, lagoas, diversidade de paisagens e um clima delicioso, constante. Tudo num pequeno espaço.

O Bombardier Q-400 velhinho, de 86 lugares, parte lotado para o Pico. Os motores nas asas ao nosso lado fazem um ruído pouco tranquilizador, os compartimentos da bagagem de cabine e a fuselagem rangem por todos os lados, parece que o avião se vai desconjuntar durante o voo. Abaixo de nós, o imenso algodão de nuvens brancas paira sereno sobre o mar.

A montanha do Pico mostra-se no lusco fusco fulvo quando aterramos na pista. Temperatura amena, o sentimento de chegada a um sítio distante, de clima diferente. Respira-se o ar livre e desimpedido do Atlântico, o cheiro da terra frágil e porosa da ilha. 

Receamos não ter táxi para chegar à vila da Madalena e apanhar o barco para a Horta. São nove e meia e outros como nós esperam que surja alguém no meio da noite com transporte para algum lado. Partilhamos táxi carrinha com dois casais estrangeiros. O condutor passa o recibo para pedirmos retorno à SATA.

Estamos com sorte. Graças às Festas do Mar, a decorrerem na Horta, há barcos até tarde. Explicamos na bilheteira a nossa situação e o direito a viagem gratuita.

- Não se preocupe, senhor. Já estamos habituados aos atrasos da SATA. Não precisa de apresentar comprovativo, nem de pagar. 

Recebemos os bilhetes. Dei uma volta pela Madalena. Vi pouca gente e muita pacatez num sábado à noite.

Chegam ao cais grupos de adolescentes que vão passar a noite nas festas.

Entramos no "Gilberto Mariano". Finalmente, chegamos ao nosso destino, na ilha do Faial: às 23h30m. Um dia inteiro,  com atrasos, voos perdidos, poucos taxistas, e a incerteza permanente de saber se chegaríamos hoje. Os pequenos imprevistos fazem parte da aventura de viajar aos sítios mais distantes e isolados. E nem sequer é inverno nos Açores, quando acontecem cancelamentos mais frequentes!

- Imaginem se vocês estivessem com o tempo contado,o incómodo que isso vos causava. Realmente, ainda estamos muito isolados!! - diz a nossa amiga ao chegar a casa.

Igreja da Madalena, ilha do Pico

A bordo do "Gilberto Mariano"


sábado, 19 de julho de 2025

Leonard Afouda encontra Angélique Kidjo em Espinho


Conheci o João há muitos anos,  no sul de Inglaterra. Um miúdo tímido,  com uma mochila às costas maior do que ele e um saco de pano cheio de conservas.  Achei bizarro:

 - Por que trazes tantos enlatados contigo?

- Vim carregado de enlatados porque pensei  que em Inglaterra era tudo mais caro. Trouxe de Portugal para poupar dinheiro na alimentação.

Dei uma grande gargalhada - era completamente louco. Foi assim que nos conhecemos.  

Trabalhámos numa quinta na apanha de maçãs. Por sermos cristãos, católicos, e com hábitos culturais parecidos,  tornamo-nos próximos. Os restantes trabalhadores,  eram sudaneses:  muçulmanos rigorosos, com quem convivíamos e nos dávamos bem. Ao contrário deles, bebíamos álcool, comíamos carne de  porco,  não interrompíamos o trabalho às 3 da tarde para fazer  abluções e rezar virados para Meca.  

O João ficou apenas um mês na quinta, regressando a Portugal no início das aulas. Eu voltei à Turquia um pouco mais tarde, onde estudava engenharia agrónoma. Beneficiava de uma bolsa de estudo que o governo do meu país oferecia aos melhores estudantes, em países com os quais tinha protocolos. Vivia quase todo o ano na Turquia, num pequeno quarto da residência universitária. No verão,  trabalhava na quinta, no condado de kent, perto de uma vilazinha pitoresca chamada Cranbrook.  Todos os anos, ligava antecipadamente ao patrão,  Mr. Pullitzer, a perguntar  se havia trabalho.

Não é por racismo, nem preconceito, mas por o João ser branco, percebi logo que não tinha a mesma necessidade de trabalhar que  nós tínhamos.  Era um miúdo  imberbe e ingénuo, mais novo do que nós. Tinha 18 anos, frequentava ainda o liceu, era a sua primeira vez em Inglaterra, a ganhar os trocos necessários para os gastar em viagens de comboio a Londres, aos fins-de-semana, sem preocupação em economizar - apesar das latas de conserva.   

Eu e os sudaneses andávamos nessas andanças há mais tempo, frequentávamos a universidade. Eu tinha 24 anos, vivia independente desde que saíra do Benim para estudar engenharia em Antalya. Levava uma vida rigorosa e apertada. Quando as maçãs não estavam maduras, passeava nos pomares, brincava com os dois dobermanns do sr. Pullitzer,  que se escondiam nas filas de macieiras para me fazerem emboscadas inofensivas.

Vivemos algumas peripécias curiosas que um dia poderei contar. O João regressou a Portugal e, o mais incrível de tudo, é que ficamos amigos até hoje. Correspondemo-nos muito tempo por carta, e depois pela internet. Regressei ao Benim quando terminei o curso, tornei-me funcionário governamental  no gabinete  de apoio à reflorestação de  comunidades rurais.

O mais incrível ainda - e a vida tece-se de encontros e acontecimentos improváveis -  é que, na única vez que vim a Portugal visitar o João, deu-se a coincidência extraordinária de encontrar a minha compatriota,  Angélique Kidjo.  Caminhávamos pela esplanada junto ao mar,  na cidadezinha de Espinho, próxima do Porto, onde ele vive. Vi o enorme cartaz com a sua figura esbelta em grande plano, a anunciar o concerto que daria. O meu coração sobressaltou-se, fiquei com o nervosismo próprio que antecede o presenciar de um grande evento. Expliquei ao João quem era ela:  uma compatriota que eu tivera o prazer de conhecer pessoalmente e com quem troquei algumas palavras -  uma diva, uma grande senhora da música africana, uma lenda vida. Não poupei palavras, não encontrei outras para exprimir a importância que ela tem  e o orgulho que nós, benineses, sentimos por ela -  uma embaixadora da nossa cultura, das muitas Áfricas que existem no nosso imenso continente - a não ser estes chavões redundantes.

Sobressaltei-me de emoção, gaguejei. O concerto era imperdível:

- João, cancela tudo o que tiveres para fazer, traz os teus filhos, esposa, amigos, todos! Para  ver o concerto.

Ficou impressionado com a minha veemência. Disse que não me preocupasse, iriamos cedo, ficaríamos sentados nos primeiros bancos,  em frente ao palco montado no largo da câmara.

O concerto decorreria na noite desse mesmo dia. Entrada livre. Ocupamos os nossos lugares aleatoriamente. Aguardei religiosamente o início do concerto da minha amada compatriota, contando os minutos que restavam para o grande momento.   Olhei discretamente para trás: a praça estava  repleta de pessoas de todas as idades, todas as cadeiras ocupadas e à volta delas, de pé,  muitas  outras  pessoas. Senti um orgulho tremendo.

Entram os músicos da Orquestra Clássica de Espinho. Aplausos.

Entra o maestro, Pedro Neves. Aplausos.

Tocam uma música introdutória,  lembrando vagamente ritmos africanos.

Aplausos.

O ecrã gigante exibe um curto  filme sobre o projeto de Angélique Kidjo  com orquestras clássicas dos vários países por onde tem passado.  

Entra um guitarrista africano. Toca  uma melodia a solo, acompanhado pela orquestra. Entra Angélique Kidjo,  de touca a cobrir a nuca e o  traje garrido de linhas africanas. Caminha diretamente  para o microfone no centro do estrado - uma rainha deslocando-se solene, segura de si, enchendo o palco com a sua presença forte. Começa a cantar.

O público,  inicialmente  circunspeto,  dançou, pôs-se de pé, acompanhou os ritmos mais vibrantes - adaptações de temas africanos conhecidos e originais. Vivi tudo  com  especial comoção,  pelos motivos que referi. Vieram-me  lágrimas aos olhos.  

Angélique Kidjo  finalmente falou, em Inglês, sobre o seu projeto, sobre a importância da música  na união dos Seres Humanos.

- Somos Todos Seres Humanos. Não importa a nossa cor, ideologia, religião. Ao destruir e ser intolerante com outras culturas, perdemos todos a nossa humanidade comum.

A Humanidade é só uma.

Grande ovação. A audiência ficou mais entusiasmada e redobrou de energia na música seguinte: Jerusalema.

Quis gravar um vídeo e partilhá-lo nas redes sociais para certas pessoas o verem,  com uma legenda simples e irónica:

Para todos os racistas e preconceituosos deste mundo.

Não o fiz.

No fim do concerto, não resisti. Que diabo! Devíamos ser os únicos benineses em Espinho. Subi as escadas do palco, os jovens músicos arrumavam os instrumentos. Pedi autorização para entrar no camarim e falar com ela. Foi fácil. Ao verem um negro desconhecido a falar inglês,  devem ter pensado que se tratava de um amigo próximo. Chamaram-na imediatamente.

Ela apareceu sem a touca, com o cabelo curto, mais velha de perto,  cansada das duas horas de concerto. Dirigi-me a ela em Fon, a língua ancestral dos nossos antepassados, falada  no Sul do Benim,  onde ambos nascemos:  

- Angélique, muito obrigado. Não podia sair daqui sem falar contigo.

Olhou-me muito surpreendida  por encontrar uma pessoa a falar a mesma língua nativa. Relembrei-lhe o encontro que tivemos  em Ouidah,   há muitos anos, e  o  número de vezes que a vi em concertos no nosso país.  Ficou esfusiante com a minha generosidade e ligação à sua música. Demos um abraço apertado,  como se faz em África, quando  pessoas da mesma família se encontram. Tiramos selfies. Perguntou onde se podia comer àquela hora e convidou-nos a ir  com ela.

Fomos a   um restaurante,  com o seu staff,  em frente ao mar,  num largo passeio de calcário, comum em Portugal, de pedras brancas e pretas,  meticulosamente colocadas formando padrões geométricos. Estivemos mais algum tempo juntos,  a petiscar e  a beber. Foi um dia memorável.  

 





sábado, 5 de julho de 2025

Vieira do Minho



Sinto-me uma estrangeira. Do outro lado do rio, gruas  e mais gruas. A cidade transforma-se vertiginosamente, sem qualquer planeamento, ao que parece. Se houvesse planeamento, os novos edifícios seriam construídos mais espaçadamente, com jardins e estradas pedonais entre eles. A densidade de construção é tremenda. Imagino que, em  poucos meses, as novas zonas residenciais estarão apinhadas de carros; haverá mais engarrafamentos, acessos mais demorados e confusos. Mais buzinadelas, ruído e poluição atmosférica.

Por estes e outros motivos, resolvi vir alguns dias  para Lamêdo,  esquecer a cidade,  ouvir o silêncio, o rumorejar do rio Ave perto da nascente, na serra da Cabreira. Levanto-me cedo todas as manhãs, subo o trilho até à ponte medieval, fico a olhar embevecida os leixões musgosos mergulhados na água translúcida, os fetos, raízes e árvores centenárias que cobrem a encosta e o que resta da ponte. Depois, subo mais umas centenas de metros, passo pelos velhos moinhos abandonados, disfarçados nas silvas,  e chego à nascente. Olho os montes em redor, a frondosa mata do Turio, o vale e a vila de Vieira do Minho, rodeada de vegetação opulenta.

O dia  até correu bem.  Apesar de procurar o silêncio, não me consigo distanciar totalmente das modernices quotidianas. Trouxe o portátil,  faço a ligação wireless ao telemóvel e fico com internet disponível nesta pequena arrecadação em que pernoito, isolada.

As notícias inquietam-me: saber que morrem, num país distante, crianças e mulheres inocentes, vítimas de uma guerra injusta e tenebrosa, de extermínio e ocupação ilegal, à qual os nossos países assistem sem nada fazer, tratando como igual o agressor.

Passei uma parte da manhã a enviar mensagens eletrónicas: utilizei layouts  muito semelhantes -  alterei o nome das empresas  e, nos últimos parágrafos, especifiquei o tipo de negócio que mantêm com o ocupante.

Dear Sirs

a)        I have to informe you that I will not buy any product related to your label (TV, household appliances, mobile phone,...) while your firm stands as " the main contractor for the Euro-Asia Interconnector, a  cable that is planned to connect  illegal settlements in the…. occupied territory to Europe”.

 I will ask my friends and relatives to do the same and tell them  why.

b)       as your  customer for some  years and as someone pleased with your service, it is with great regret that I inform your firm that I will stop using your platform to book hotels while your  offering  rentals in illegal ….. settlements.

I will look for alternative ways to book hotels in advance.


Thank you very much,

Fiquei mais reconfortada: ficam a saber que não somos indiferentes, que não podem fazer negócios a qualquer custo. As multinacionais devem ser responsáveis, demonstrar ética e o mínimo de solidariedade com os mais vulneráveis e injustiçados.

Não tenho cozinha, almoço todos os dias na “Casa Pancada”. A dona Ermelinda é uma joia de pessoa,  m`nina, hoje temos rojões. m`nina, hoje temos cabrito. A m`nina é  muito bonita”. Não há ementa. A refeição é confecionada  com os ingredientes mais comuns do dia e da época. Dizem que o nome do restaurante se deve à pancadaria frequente que por ali havia quando era uma tasca. A dona Ermelinda já ultrapassou os 80 anos e gere o restaurante há mais de 30.  

Está a decorrer o festival “Província Sonora”. Esta tarde atuou o violoncelista Filipe Quaresma no Centro Cultural  Casa de Lamas. Peguei na bicicleta e desci depois do almoço  ao centro da vila para o ver  tocar os prelúdios de Bach.  Foi um  privilégio ouvir, gratuitamente e  ao vivo,  melodias divinais num edifício histórico do século XVI,  entre as paredes sólidas de granito e o calor quente e abafado. A minha mente e alma  evolavam-se   ao som da música.  Encontrei no concerto a  Presidente da Câmara, a professora Elsa Ribeiro,  simpática e prestável como sempre. Acha estranho uma mulher sozinha vir  para Vieira do Minho, isolar-se num barracão na aldeia de Lamêdo. Expliquei que era só por uns dias, que estava a precisar de sair da cidade e que me mantenho muito ocupada,  com as caminhadas na serra da Cabreira e a navegar na internet, como esta manhã.

Ofereceu-me o folheto turístico do concelho. Depois disso, ainda tive forças para pedalar até à Ermida da Senhora da Lapa, onde vai decorrer uma grande romaria no próximo domingo, e regressar derreada ao meu refúgio temporário.






O Violoncelista Filipe Quaresma, na Casa de Lamas (com áudio)

Casa de Lamas



Ermida da Senhora da Lapa